quarta-feira, setembro 01, 2010


Blade Runner e O jardim dos caminhos que se bifurcam: leituras, sujeito e ação 
[Primeiro manuscrito]
Ma. Alessandra F. Conde da Silva
Universidade Federal do Pará

RESUMO: Procuramos, neste trabalho, trazer à tona indícios de algumas teorias sobre a pluralidade dos significados do texto, dos diversos caminhos da interpretação, e da identidade do sujeito, que recorre à sua comunidade interpretativa para desvendar os segredos que a leitura propicia de forma ativa, participativa. À esteira de algumas teorias pós-modernas, intentamos fazer um exercício dinâmico de leitura e interpretação sobre a obra cinematográfica Blade Runner e o conto O Jardim dos caminhos que se bifurcam do livro Ficções de Jorge Luis Borges, tendo em Eco, Jameson, Hall, Bloom, Barthes, Calvino, dentre outros, o eixo basilar. Quando necessário, recorremos ao mix midiático, ao jogo intersemiótico, ainda que não lhe demos, no texto, este nome.

1-    Introdução
Procuramos, neste trabalho, trazer à tona indícios de teorias sobre a pluralidade dos significados do texto, dos diversos caminhos da interpretação, e da identidade do sujeito, que recorre à sua comunidade interpretativa para desvendar os segredos que a leitura propicia de forma ativa, participativa. À esteira de algumas teorias pós-modernas, intentamos fazer um exercício dinâmico de leitura e interpretação. Quando necessário, recorremos ao mix[1] midiático, ao jogo intersemiótico[2], ainda que não lhe demos, no texto, este nome.
Tais teorias não são novas, como sabemos, mas o quanto delas temos apreendido, sobretudo no ensino das Artes, incluindo nesse rol a literatura? Como olhamos para uma obra de arte? Como lemos um texto literário, por exemplo? Buscando as imposições autorais, ou do artista, da Escola ou Tendência? Preocupamo-nos com o plano da forma ou somente com o do conteúdo?
Num passeio pela Literatura Portuguesa, do período renascentista, tomamos conhecimento de uma sinestesia, incômoda para a Escola da época, assaz obediente a Antonio Ferreira, leitor de Horácio. “Olhos quebrados” permite-nos, numa digressão, uma leitura de olhar fragmentário. Digressão porque a expressão na poesia daquele tempo voltava-se à alusão a olhos cheios de lágrimas, ou como podemos notar em outros exemplos de topoi “olhos como fontes de águas” (BRAGA, s/d, p. 257).
Com olhos quebrados ou olhos fragmentários é assim que, segundo a estética moderna, devemos encarar uma obra de arte. Podemos tentar visualizar a imagem de um olho quebrado. Na verdade veremos fragmentos talvez cristalinos de olho. Se ele é azul, ou verde poderemos detectar pequenos pedaços coloridos e disformes. Se não vimos ou soubemos que tais pedacinhos faziam partem de um olho, certamente ficaria enevoada nossa percepção quanto ao conhecimento da imagem inicial, isto é, da forma não fragmentada. Podemos recordar do Bicho, obra de Lígia Clark[3]. Notemos que o Bicho é plástico, é moldável de acordo com as inserções do fruidor/receptor, que passa a agir sobre a obra. Cada movimento do fruidor/receptor altera a forma do Bicho e nossa maneira de vê-lo, de lê-lo.
A leitura da imagem torna-se plural, complexa, pois, como enfatiza Buoro (2006, p. 52) “o artista, ao construir seu objeto, torna visíveis seus pensamentos, emoções e sentimentos, organizando-os num texto visual prenhe de significados (...)”. Claro está que este artista “é um ser colhido numa relação dialética (transferência, repetição, erro e comunicação) com outro poeta e poetas”, diz-nos Harold Bloom (2002, p. 142), ou seja, há uma relação de diálogo com outros artistas e com suas linguagens: um texto sempre responde a um outro texto e um poeta sempre responde a um outro poeta (BLOOM, 1995, p. 30). Para o universo das significações é indispensável que se considere a forma, pois é esta que nos conduzirá às muitas possibilidades de leitura, chamando-nos a entender como ela, a imagem, “mostra o que mostra”. Para Ana Claudia Oliveira (apud BUORO, 2006, p. 52),
toda e qualquer imagem significa pelos efeitos que ela produz o que embasa a postulação de que a significação está então no modo como ela dá a ver o que torna visível. A preocupação do estudioso é pois com o como a imagem mostra o que mostra, buscando instrumental metodológico para explicitar e compreender como ela significa o que significa pelos modos de sua estruturação textual.

Assim, a leitura de uma obra de arte conduz o fruidor/receptor a ser um também demiurgo no universo criador. Todo demiurgo precisa organizar a matéria pré-existente, isto é, precisa ter competências para lidar com os textos, para ler as formas, o plano da expressão e seus consequentes conteúdos. É da estrutura formal da obra que construímos a significação, como já atestamos, e, importa-nos citar Buoro (2006, p. 55) quando diz que “os significados brotam não da simples soma das partes, mas das relações entre elas”. 
O fato é que nos acostumamos a ver o mundo globalmente, mas, ainda assim, quando entramos em contato com obras de arte, ainda esperamos ser guiados pela mão forte do artista ou da obra. Buscamos um único close up, isto é, dirigimos nossa atenção a um único aspecto e esquecemo-nos da pluralidade de interpretações e de que obras apresentam interfaces. Esperamos que a qualquer minuto alguma criatura fabular nos conte a moral da história. Sabemos, no entanto, que a leitura da obra de arte permite várias perspectivas, quer em relação à Literatura, quer em relação às demais Artes. Cabe a nós, leitores, entendermos o nosso papel como co-participantes no processo interpretativo. Eco (1999, p. 8), orienta-nos a ver que “um texto [uma obra] é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte do seu trabalho”. A leitura da imagem para o leitor é um procedimento particularizado. Ele pode desfragmentar o olho e construir uma nova imagem. Ou pode fazer o movimento inverso.
2-    Lendo num labirinto/espaço pós-moderno
Vivemos na época do espaço, não mais do tempo, aliás, o próprio tempo é espacializado, diz-nos Fredric Jameson (2007, p. 173). Ambientes são construídos de forma que eras[4] sejam retratadas – segundo a inclinação do artista –, da mesma forma que conceitos e ideologias, i.e., o receptor é convidado a estar em movimento e a captar o todo do ambiente, no qual muitas imagens estão dispostas num constante continuum, porque se apresentam de forma fragmentária, como se estivesse, por exemplo, numa igreja gótica, ao menos em relação ao movimento e ao continuum, ao sentimento do inacabado, já que o olhar para muitas direções, quanto à fruição da arte gótica, não correspondia, é claro, à ideologia, posta na alegoria (HAUSER, 1998, p. 246-247). Muitas informações, com forte apelo ao heterogêneo, são transmitidas e estão à espera de um sujeito que a frua, a decifre ou a desconstrua. No pós-moderno, as mídias se inter-relacionam, porque tomam consciência de que estão presentes “no interior de um sistema midiático, no qual sua produção interna também constitui mensagem simbólica” (JAMESON, 2007, p. 177); desta forma cada mídia, como cada intenção, estão postas num sistema corporativo, dialógico, e que, por essa razão, se querem representar. Falamos de um mix de mídia e de um mix de significados que podem reforçar o sistema de valores vigentes ou dele se subtrair, algo que ficasse em torno de “uma família que não sabe amar, não deve existir” de Cem anos de Solidão de Gabriel Garcia Marques. Mas não vamos agora falar de valores, consideremos, antes, algumas possibilidades de leituras de Blade Runner e de O jardim dos caminhos que se bifurcam de Jorge Luis Borges, um dos contos de Ficções.
Talvez, seja indispensável explicar a razão da escolha do conto de Borges e de Blade Runner. Em primeiro lugar, podemos situar Borges, o “mestre do escrever breve” (CALVINO, 2009, p. 252), com o seu inteligentíssimo realismo fantástico, como um escritor em transição entre o Modernismo, que Jameson (2007, p. 310) chama de tardio, e o Pós-modernismo[5]. Mas esta não é a única razão. Como atestou Eco (1999, p. 12), a metáfora de Borges, acerca do labirinto e dos vários caminhos possíveis, corresponde à visão de uma obra aberta à espera de um receptor que a frua[6]. Em Borges, o tempo circular incide sobre um espaço labiríntico, no qual pode haver paralelismos; o universo pode seguir harmoniosamente estabelecido, fatos de remotas regiões podem se repetir, se combinar; o passado pode confluir no presente, ainda que em intervalos diferentes; basta que um homem sonhe e a sua criação existirá. Mas, de repente, um dos caminhos do labirinto pode levar a outro lugar desconhecido; nele o homem já não existe, por que alguém deixou de sonhá-lo e ele tem disso consciência; às vezes, ele é duplo, pois “um livro sem o seu contralivo é considerado incompleto (BORGES, 1975, p. 25).
Alguns desses aspectos podemos ver em Blade Runner, cujo final é instigante, ainda que distópico, ou talvez, por isso mesmo instigante. Um unicórnio de papel, esmagado por Rick Deckard, segundos antes de sua fuga, é a última cena do filme de Ridley Scott. Seria o policial um replicante, uma réplica, um simulacro cibernético do homem, no qual a corporação implantou memórias de infância, ou sonhos e desejos? O sonho do caçador de andróides e o origami do animal mitológico seriam indícios para que o receptor interpretasse um Deckard replicante, um andróide que mata andróide? De fato, tais pistas existem no filme e justificariam a recorrência da imagem do unicórnio. No entanto, ao que parece, o filme pode sugerir bem mais do que simples pedacinhos de pão arbitrariamente largados pela mão forte do autor/roteirista no desenrolar da história, tumultuando a decisão final de que a personagem central de Blade Runner é um robô. Em suma, Blade Runner, torna-se interessante para o nosso estudo, pois, o receptor é convidado a continuar a história, a dar-lhe um desfecho.
Umberto Eco em Seis passeios pelo bosque conduz-nos a percorrer os muitos caminhos da leitura e a entender o papel do autor, do leitor quer ideal ou não na narrativa. Sabemos da liberdade do leitor, da abertura da obra, da compreensão de que os textos não são organismos autônomos e fechados, da separação entre intenção do autor e o significado do texto. Respiramos, é claro, ideologias em todo o lugar. Somos levados a fazer leitura de tudo: leitura do Estado, do corpo, da globalização, do consumo. Relativizamos as visões; já não há uma verdade, mas verdades. Até mesmo textos medievais (que recebem maior atenção, bem ao gosto da cultura de massa e seus revivals e retornos), bíblicos, alegorizados, segundo uma ideologia que era não só hegemônica, mas quase que completamente homogênea, são agora interpretados, sendo reconhecida a impossibilidade de leitura, ao modo antigo, negando a “firmeza ideológica” e se “dissolvendo numa digressão multidirecional” (JAMESON, 2007, p. 183-189), à esteira de Barthes. Participantes ativos no processo dinâmico da leitura, nossa experiência de leitores, transita entre o passado e o presente, i.e., este engloba aquele, resultando numa fusão de horizontes (ZILBERMAN, 1989, p. 36-37).
Rick Deckard tem uma inclinação ao passado. Quando ao piano, o receptor o vê ensimesmado, sonolento, pressionando algumas poucas teclas do instrumento. A captura da cena, ainda aberta, permite-nos reconhecer imagens do passado, fotos em preto e branco, amarelecidas pelo tempo; o piano antigo; a partitura musical; a música nostálgica; o copo de Whisky; o desenho de um rinoceronte - ou seria um elefante[7]? - numa tomada inicial da cena, quando a câmera desliza lentamente, apreendendo a figuração solitária e saudosista do cenário, numa mescla de claro-escuro, de espaço pós-moderno e gótico, tendencialmente orientalizado, de construções fortificadas, iluminadas pelos anúncios das propagandas comerciais, veiculadas pelas mais altas tecnologias[8]. O passado é logo ali? É nesse momento de solidão e de dormência que ele sonha e o receptor vê surgir em meio ao nevoeiro, por detrás de uma árvore, um mitológico cavalo branco. (Seria uma imagem fragmentária na memória do policial a espera de um continuum que lhe explicasse – ou inter-relacionasse a presença?). O momento de recorrência ao passado, de contemplação epifânica, talvez, é breve e, como em um despertar, uma mensagem é decifrada: “por detrás da árvore aparecerá um unicórnio”. Desperto, vemos Deckard pegar uma foto e nela identificar, atrás de uma imagem obscurecida, uma personalidade, uma replicante. Nessa cena, uma simples lição se nos afigura: o passado o favorece a compreender o presente e a resolver o futuro. Lembremo-nos então das “comunidades interpretativas” de Eco ou dos “horizontes de expectativas[9]” de Jauss, das conexões que o leitor/receptor fará no processo dinâmico da leitura; das referências, relações, recorrências, inferências e digressões que um texto permite[10].  
Um livro é um labirinto. Esta é a máxima de O jardim dos caminhos que se bifurcam de José Luis Borges, em Ficções.  O descendente de Ts’ui Pen, espião do Império alemão a contra gosto, “sob as árvores inglesas [medita no] labirinto perdido” (BORGES, 1975, p. 96) que seu antepassado teria construído: “Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse de algum modo os astros”, diz-nos Yu Tsun. Implicitamente, Borges convida o leitor a participar de um jogo textual, cujas regras são assentadas pelo autor-modelo[11]. Tais regras, no tempo da narrativa, servem-se dos indícios do passado e do futuro, num labirinto, segundo o desejo de Yu Tsun.
Neste texto de Borges, algumas referências temporais são marcadas. Tomaremos de empréstimos a Umberto Eco (1991) noções acerca do autor-modelo, que nos diz tratar-se de uma estratégia narrativa, que visa a guiar os nossos passos, quando aceitamos ser leitores-modelos, isto é, quando colaborarmos com a construção do sentido do texto, seguindo as pistas deixadas pelo autor-modelo. Por exemplo, o autor-modelo está no discurso de Albert - “O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo” (BORGES, 1975, p. 103) – indicando através de um flashforward o que deveria o leitor-modelo esperar: o fato de virem a ser inimigos no futuro. Outra indicação do autor-modelo é expressa quando Yu Tsun declara: “O futuro já existe (...), mas eu sou seu amigo”. Sabemos então o desfecho dessa trama: o espião chinês mata Albert. No entanto, Borges ainda quis confundir o leitor, deixá-lo na incerteza, um procedimento para frustrar as inferências do leitor, como acontece, às vezes, com as narrativas policiais. Notemos que durante a narrativa muitos outros indícios a respeito da posição abjeta do chinês são comunicados pelo autor-modelo, através da própria fala do narrador–personagem. Outra estratégia do autor-modelo a guiar o leitor também modelo são as inserções paratextuais, que em O jardim dos caminhos que se bifurcam ocorrem na forma de nota do editor; neste caso, o procedimento de flashback informa ao leitor o que aconteceu no passado a respeito de Runeberg, um espião prussiano, a serviço do Império alemão. Eco (1999, p. 36) chama-nos a atenção ao fato de que o flashback “parece reparar um esquecimento do autor, ao passo que o flashforward constitui uma manifestação de impaciência narrativa”.
Passado e futuro confluem numa narrativa no presente. A morte iminente do espião chinês, o medo de ser capturado pelo oficial irlandês, a necessidade de passar para o Chefe alemão “o nome do exato lugar do novo parque britânico de artilharia” (BORGES, 1975, p. 92), a procura por Stephen Albert – o que revela (o espião chinês o vê com ares de “sacerdote” e também de “marítimo” (BORGES, 1975, p. 98)) –, o mistério subscrito sobre a trama policial que recorre sobre o labirinto e o livro de Ts’ui Pen, são eventos que movimentam essa narrativa borgeana que também se quer labiríntica, um “labirinto de símbolos” e de “tempo” que é cíclico.  Stephen Albert diz para Yu Tsun que O jardim dos caminhos que se bifurcam é uma charada sobre o tempo (BORGES, 1975, p. 102). Tempo que nos possibilita, num momento futuro, inúmeros caminhos, cenários, personalidades, existências ou não, que podem se relacionar, aproximar, bifurcar, cortar ou se ignorar. O espaço, no qual esse tempo múltiplo ocorre, é o labirinto simbólico que pode ser cruzado, perpassado por possibilidades plurais, que estreitam as relações, ou as repelem, num átimo temporal, até que, o ciclo se cumpra. Segundo Ítalo Calvino (2009, p. 257),
essa ideia de infinitos universos contemporâneos em que todas as possibilidades sejam realizadas em todas as combinações possíveis não é uma digressão do conto, mas a própria condição para que o protagonista se sinta autorizado a executar o crime absurdo e abominável que a missão de espionagem lhe impõe, certo de que isso ocorre só num dos universos mas não nos outros, ou melhor, que, executando-se aqui e agora, ele e a sua vítima possam reconhecer-se amigos e irmãos em outros universos.

Num artigo sobre Dante, Borges (apud CALVINO, 2009, p. 258) expõe que
no tempo real, na história, toda vez que um homem se encontra perante diversas alternativas, opta por uma e elimina e perde as outras; não é assim no tempo ambíguo da arte, que se assemelha ao da esperança e do esquecimento. Hamlet, em tal tempo, é são da cabeça e é doido (...)

Há, de fato, várias “agonias possíveis”, “imprecis[ões] ondulante[s]” a que os leitores podem se submeter (BORGES apud CALVINO, 2009, p. 258).  Sobre a sua estética[12], Borges na revista Ultra de 20 de maio de 1921 afirma que “solo hay, pues, dos estéticas: la estética pasiva de los espejos y la estética activa de los prismas. Ambas puedem existir juntas”. Trabalhando com a metáfora dos prismas que para Borges é “esa curva verbal que traza casi siempre dos entre dos puntos – espirituales – el camino más breve” (BORGES apud MORENO, 1967, p. 493), importa-nos, para este artigo, o lugar-comum, que tem no prisma uma estrutura que permite muitas perspectivas, cores, imagens e interfaces.
Em outro conto de Ficções, Tema do Traidor e do Herói, num exercício que Borges (1975, p. 127-131) indica como influenciado pelas concepções filosóficas de Leibniz (a harmonia preestabelecida), relações paralelísticas ocorrem; um fato do passado ocorrerá no futuro. Um homem, diz-nos o conto, é traído como Júlio César e terá indícios dessa traição, mas, como o imperador, não lerá os sinais. O que conta essa história tomará de empréstimo a Shakespeare, a saber, a Macbeth e a Júlio César. Interessante princípio desencadeado, naquela obra do dramaturgo inglês, pela fala das bruxas que dizem a Macbeth que um dia ele será o rei. E a partir daí toda a trama, traição, ascensão e derrocada do Lord ocorrem. (Mas não fiquemos na pretensiosa análise de Shakespeare). A linguagem dá vida, impulsiona à ação: uns por causa de um nome, Albert, matam um homem, outros por ouvirem as vozes na floresta, traem seu rei. Fry (apud TODOROV, 1975, p. 15) diz-nos que “tudo o que é novo em literatura é o velho reinventado”, evocando constantes conexões, alusões, continuações.
Uma ação desencadeia outra ação, na trama, como a mulher, de A jangada de pedra, que risca uma linha no chão com uma “vara de negrilho” e uma camada de terra se desloca do continente, e os cães sem cordas vocais ladram, e, dias depois, “um jornalista francês, Michel e cínico” conversa “com um seu colega espanhol, sério e Miguel” (SARAMAGO, 2003, p. 22). Na história de Borges, a leitura de um evento permite que se proceda a leitura de outro evento. Yu Tsun possui um segredo e está em Stephen Albert a chave para a compreensão, da mesma forma que é ele quem conhece os mistérios do labirinto construído pelo antepassado de Yu Tsun. Albert deve morrer para que o Chefe alemão decifre que o parque da artilharia britânica está localizado na cidade homônima. Princípio semelhante ao ocorrido com Deckard, o sonho e a foto.
Como Édipo, Deckard precisa desvendar os segredos da esfinge ou procurar pelo que não existe, mas que quer existir. E ele o faz por várias vezes: ao concluir que Rachel é uma andróide, ao entender o mistério do unicórnio, ao descobrir a replicante na foto obscurecida – a ser morta na cena seguinte e que o conduzirá a desvendar um outro mistério: achar os que desejam ser humanos. Ele vive num labirinto e o receptor entende, ao final, que a própria existência de Deckard é também um labirinto.
O mistério final, como já dito, não é para Deckard, é para o receptor. O tempo, numa perspectiva borgeana, é cíclico e está espacializado num labirinto, num texto que permite digressões multidirecionais. O passado volta para nos assustar, para nos causar estranhamento, para nos fazer questionar sobre a origem humana ou não do caçador. Por que o oficial oriental do filme, Gaff, – que vez por outra expõe sua marca, sua linguagem sem voz (como os cães sem cordas vocais), seus animaizinhos de papel – deixa ao chão o unicórnio? O receptor, atento, lembrar-se-á do sonho de Deckard e poderá concluir: já que as memórias de infâncias são implantadas na mente dos andróides, seria esse o caso da personagem principal? No final do filme, o cínico oficial oriental diz: “Que pena que ela não vai viver. Mas, afinal, quem vive?”. Rachel não viverá porque será morta, ou porque é uma andróide com tempo de existência pré-determinado? Vive, de fato, Deckard, ou a replicante Rachel, ou o próprio oriental – quem é humano e quem não é? Viveu o construtor dos brinquedos, avesso às pessoas, aos relacionamentos, ensimesmado e recluso? Viveu o grande cientista, demiurgo de um universo cibernético, cujas criaturas aspiram pelo criador? Não “viveu” a sobrinha de Tyrrel, o construtor, nas memórias implantadas em Rachel? Aqui, pensamos, todos os desfechos podem ocorrer, porque o tempo múltiplo permite que os vários caminhos do labirinto/espaço se conectem instantaneamente e que relações e identidades sejam construídas e desconstruídas; em algumas, o policial é humano, em outras é um replicante.
3-    [Num dos mundos sou seu amigo em outro seu inimigo]: o sujeito fragmentário
A identidade, diz-nos Stuart Hall (2003, p. 71), “(...) [está localizada] no espaço e no tempo simbólicos”; o que nos leva a entender que vivemos em “geografias imaginárias” (SAID apud HALL, 2003, p. 71); e se achamos que estamos seguros com nossas verdades é porque construímos uma cadeia de narrações ficcionais que nos explicam e nos acalmam, mas, o fato é que nosso rosto não é um, mas vários: Somos um chinês, descendente de imperador, que trabalha a contra gosto para o Império alemão e que, caçado pelo oficial irlandês, procura revelar para o inimigo ariano o nome da cidade, na qual está localizado o parque da armada britânica, mas para isso devemos matar Albert, o visionário, do qual receberá a resposta para o mistério do labirinto de nosso antepassado, ou seja, a identidade, segundo essa óptica, é marcada pela diferença, pela abertura, pelas várias posições de sujeito, agora, global.
Albert diz a Yu Tsun (BORGES, 1975, p. 103): “O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis futuros. Num deles sou seu inimigo”. O futuro chegado, como principia Yu Tsun, trouxe um evento diferente, no qual a identidade do sujeito, outrora amigável, cumpre o vaticínio do sacerdote Albert. Afirmando, ainda, a amizade, o espião chinês atira no sinólogo. Entre a contrição e o cansaço, o assassino resigna-se: “O executor de uma empresa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve impor-se um futuro que seja irrevogável como o passado” (BORGES, 1975, p. 95). “Breve [continua] só haverá guerreiros e bandoleiros”.
O espião chinês, resignado à morte iminente, empreende a aventura covarde e, ainda que tenha disso consciência dela não faz caso. Cinicamente, pontua: “Assim combateram os heróis, tranqüilo o admirável coração, violenta a espada, resignados a matar e a morrer” (BORGES, 1975, p. 101).  Num exercício de interpretação, pensamos que Rick Deckard não deixa de ser um mensageiro, assim como Yu Tsun: mensageiros e guerreiros. Aquele, guiado pelo desejo, a despeito de sua origem humana ou não, resiste ao sistema – assim como os andróides perseguidos o fizeram; este é um covarde conformado, sujeito passivo, sem um sentido de si.
Fredric Jameson (2007, p. 310) diz-nos que somos, agora, num mundo pós-moderno, sujeitos coletivos, sujeitos das corporações. Já não há mais lugar para o sujeito individual do romantismo, pois a identidade é fragmentada, descentrada, deslocada. Sofremos agências, movemo-nos pela libido, impulsionada pela cultura consumista. Ora lutamos, porque guiados por nossas utopias, ora, cansados, vencidos pelo sistema, resignamo-nos.  
Recorramos, novamente, a Blade Runner. Tudo o que os andróides queriam – numa perspectiva até para eles mesmos, utópica – era viver, era ter mais tempo, mas essas máquinas, cujas memórias humanas foram implantadas, não conseguiram a conexão possível, pois a identidade de cada replicante era idealizada, fantasiada; foi construída para ser unificada, completa, segura e coerente, como uma máquina e feita para máquinas. Sujeitos cartesianos[13]? O fato é que a máquina recorreu à digressão e, ao olhar os humanos, desejou a vida, mostrou-se apta à interação social e à particularização, a ser marcado pela diferença[14]. Podemos, por exemplo, entender que essa história de ficção científica é uma alegoria da relação ser humano e máquina – fruto da fantasia do homem pós-moderno ao tentar lidar com as tecnologias –, da ordinária dicotomia e sua antítese:  Desumanização do homem e humanização da máquina. Mas esta não é a nossa intenção, queremos, antes, destacar que a aspiração dos replicantes, na busca pelo criador, na tentativa de conseguir mais tempo de “existência”, era “caracterizada por um processo sem-fim de rupturas e fragmentações internas no seu próprio interior” (HARVEY apud HALL, 2003, p. 16), tal qual ocorre com o sujeito pós-moderno. Como define Hall (2003, p. 24) – o que pensamos ter aplicabilidade para a leitura de Blade Runner –,
uma vez que o sujeito moderno emergiu num momento particular (seu “nascimento”[na era moderna]) e tem uma história, segue-se que ele também pode mudar e, de fato, sob certas circunstâncias, podemos mesmo contemplar sua “morte”.

Tendo um tempo de vida delimitado[15] – seis anos – ao replicante Roy, resta somente a frustrante morte e ao homem o orgulho de abater o que aspira ser como ele. Lembramo-nos, então, rapidamente, de Emerson: “GOOD-BYE, proud world! I'm going home:
Thou art not my friend, and I'm not thine”.
O vento sul[16] não pode sobre o corpo morto trazer vida, pois a ação obedece à palavra, ao código e o código genético do replicante não permite alteração, obra fechada. Sem palavra, sem ação.
O sujeito pós-moderno é fragmentário, plural, diverso, que constrói ao longo da sua história – agenciada, desconstruída, reconstruída –, um aparato cultural que o auxiliará a descortinar, por exemplo, os mistérios da leitura que abarca o cinismo do mundo, o mundo e sua paródia.
4-    Conclusões de uma ação cínica.
O cinismo, ao que parece, vem coroar a existência de duas das personagens citadas: o oficial oriental, Gaff, e o espião chinês. Entre o impudor e a oposição ao sistema, conforme nos orienta o dicionário, o primeiro, vestido de passado, é cínico, não porque combata a ordem vigente, mas porque está a ridicularizar o mundo dos sentimentos – o mundo dos humanos? Seria ele um cínico replicante, com consciência de “origem” (inveja da criatura, o Mal Secreto?), ou um impudico humano? –; ele é um troçador, um provocador, um habitual decifrador de enigmas, cujo mote, é o medo, o desejo, o amor, a ofensa, o interesse. Sua lógica o faz um bufão. Sua linguagem é de papel e Barthes (1978, p. 14-17) já nos advertiu que ela é poder e que está solícita à digressão, porque a linguagem deve ser subvertida pela própria linguagem. Calibã, de A Tempestade, última peça de Shakespeare, amaldiçoou Próspero com a própria linguagem do dominador. E o nativo tinha consciência disso. Gaff é um aprendiz, deve aprender com Deckard a caçar andróides, ainda que o futuro lhe reserve como presa, o seu inspirador. Mas esta é outra história. A recusa de Deckard em aceitar o trabalho, manifestando ofensa por questões passadas e, aceitando, novamente, o trabalho, porque, “quem não é da [corporação] não é ninguém, é gentinha”, foi, para o oriental la mode rétro, com bengala em punho, gravata borboleta, bigode e lentes azuis, um ato de covardia. Ele então deixa à mesa uma galinha de papel. Como juiz e algoz, o oficial sentencia e agride, pois o poder da linguagem, o poder de ler e interpretar, de escrever e de reescrever estava em sua mão e podia ser dobrado, alquebrado, como uma folha de papel.
O segundo é um cínico porque ri de si mesmo. Ri da sua servidão ao Império alemão, da sua abjeta missão, da sua covardia; sua linguagem é conformista, seu destino e suas ações, ainda que indecentes, são irrevogáveis. O riso é burlador? Bakhtin (1999, p.10) diz-nos que sim, mas para Yu Tsun, a burla era para a sua própria consciência e existência. Numa disciplina, bem à maneira oriental, o chinês obedece ao imperativo da presença alemã, segue suas pistas, suas ordens e, sem considerar sua própria consciência e história, morre, sem que o Chefe saiba da sua contrição e cansaço (BORGES, 1975, p. 104). Tal Chefe também é uma representação, um modelo criado, aliás, um autor modelo a guiar os passos de Yu Tsun; este um tipo de Ariel, de A tempestade, a servir o despótico senhor para fazê-lo prosperar em sua empresa.
Pensamos, por fim, no cínico Roy, o primeiro da sua série como uma “alma curiosa de perfeição” (ASSIS, 1983, p. 300), aquele que é duplo, duas estrelas como um único astro: homem-máquina, sensível à poesia, sedento pelo conhecimento (acaso sua busca não era pelo criador?), mas inclinado aos mais atrozes desvios de caráter. O ser humano não é assim? Entre coisas questionáveis e extraordinárias, o andróide fez e viu o que no tempo ficará perdido, “como lágrimas na chuva”. Morre o replicante e livro e contralivo desapareçam, porque “propendem simultaneamente a apagar-se e a perder as particularidades, quando são esquecidas” (BORGES, 1975, p. 26). O homem não sabe o que Roy viu, não conhece a sua história, posto que fosse ficção e ver com os olhos de Roy é ver com os olhos da fantasia. E, na fantasia, tudo é possível.
Blade runner e O jardim dos caminhos que se bifurcam conduzem-nos a essa fantasia labiríntica, simbólica, plural, que abarca um sujeito fragmentado, coletivo e que, por vezes, age com criticidade, cinicamente transgredindo o mundo, burlando as regras da linguagem dominante, mas, em outro momento é resignadamente agenciado, deixando de sonhar seus sonhos e, consequentemente, desaparecendo. Relembrando Próspero, citamos, por fim: "Nós somos feitos do tecido de que são feitos os sonhos" (SHAKESPEARE).
 
Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. Trio em lá menor. In: Contos de Machado de Assis.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 2. ed. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec,1993.
BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone- Moisés. São Paulo: Cultrix. 1978.
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[1] Expressão utilizada por Jameson em Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio (2007, p. 178)
[2] A intersemiótica é a intercominicação, a conexão de vários sistemas midiáticos, é a inter-relação que abrange diferentes sistemas de linguagem. Por semiótica devemos entender que se trata de uma “ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido (SANTAELLA, 1983, p. 4-5). 


[3][3] O PROGRAMA NACIONAL ARTE NA ESCOLA produziu um documentário (2006) a respeito da obra de Lígia Clark, destacando seus pensamentos sobre a arte, sobretudo sobre a exposição Lygia Clark realizada em 1993, no Museu de Arte da Pampulha em Belo Horizonte.


[4] Reconhecemos que, segundo afirma Jameson (2007, p. 313-314), não há a preocupação com o passado, mas com o uso que se faz dele, numa perspectiva de renovação e reconstrução: “No pós-moderno, então, o próprio passado desapareceu juntamente com o famoso ‘sentido do passado’ ou historicidade e memória coletiva. Onde ainda permanecem suas construções, a renovação e a restauração lhes permitem ser transferidas como um todo para o presente, transformadas naqueles objetos completamente diferentes e pós-modernos conhecidos por simulacros”.


[5] Há quem o coloque no rol dos escritores pós-modernos.  Já, Nancy M. Kanson (1994, p. 15), afirma que em seu conto “El acercamiento de Almotásin” de Ficções, Borges “(...) revela, desde la década de los treinta, numerosas técnicas literarias que seguirán vigentes en su cuentística posterior, y que desde nuestra óptica actual considerarmos estrategias narrativas quientaesenciales de la postmodernidad. La intención de mi libro es afirmar que la postmodernidad en la literatura del siglo viente es de origen iberoamericana, y que Jorge Luis Borges es La figura que inicia esta subservación de los códigos narrativos que hoy llamamos la estética de la postmodernidad”. Entretanto, segundo orienta-nos Linda Hutcheon (1991, p. 20), o pós-moderno é peculiaridade da América e da Europa Ocidental; o terceiro mundo deve ser excluído, pois a sociedade pósmoderna é pós-industrial altamente desenvolvida e apoiadas na informação, ao contrário do que ocorre nos países terceiro-mundistas: economia em desenvolvimento e tecnologias, no que se refere à informação ainda em formação.  


[6] Eco (1999, p. 12) à luz da didascália, informa-nos: “Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo. Na verdade, essa obrigação de optar existe até mesmo no nível da frase individual – pelo menos sempre que esta contém um verbo transitivo. Quando a pessoa que fala está prestes a concluir uma frase, nós, como leitores ou ouvintes fazemos uma aposta (embora inconscientemente): prevemos sua escolha ou nos perguntamos qual será sua escolha (pelo menos no caso de frases de impacto como ‘Ontem à noite no campo-santo do presbitério eu vi...’”.  E passamos a imaginar a continuação da história. 


[7] Trata-se, parece, de um simulacro, como a coruja e os répteis artificiais e os animaizinhos de papel, permitindo uma leitura de que a natureza já não existe mais, num mundo que despreza o natural. Simulacros também são, como sabemos, os replicantes; fantasia corporificada, engenho ficcional, máquina com um programa anímico, criados para satisfazerem as necessidades humanas, mas extintos quando adquirem consciência de “existência” (ou também de classe, visto que os replicantes deveriam substituir os humanos nos trabalhos pesados e servi-los de forma libidinal?).


[8] O esplendor visual que Blade Runner apresenta, sugere, para Fredric Jameson (2007, p. 382) ”um consumo de imagens mais familiar (mais não menos suntuoso e gratificante), que tem pouco a ver com os futuros, fantasiados ou não, mas tudo a ver com o capitalismo tardio e alguns de seus mercados favoritos. [...] o filme ‘significa’ (talvez essa não seja a melhor palavra) não o colapso da alta tecnologia em um futuro distante cheio de problemas, mas antes a sua conquista. Como representações, tais filmes pós-modernos distópicos   parecem nos oferecer pensamentos e hipóteses sobre o futuro [...]”. 


[9] Segundo Zilberman (1989, p. 49), o horizonte de expectativa é “o misto dos códigos vigentes e da soma de experiências sociais acumuladas”.


[10] Achamos importantíssimo recordar, para efeito didático, que nesse processo de recepção, vários saberes se inter-relacionam, tanto os objetivos, quanto os subjetivos.  Segundo Jauss (apud ZILBERMAN, 1989, p. 34): “A análise da experiência literária do leitor escapa ao psicologis­mo que a ameaça quando descreve a recepção e o efeito de uma obra a partir do sistema de referências que se pode construir em função das expectativas que, no momento histórico do aparecimento de cada obra, resultam do conhecimento prévio do gênero, da forma e da temática de obras já conhecidas, bem como da oposição entre a lin­guagem poética e a linguagem prática”.


[11] Eco define o autor-modelo como “uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como o leitor-modelo” (ECO, 1999, p. 121). Este é “uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar” (ECO, 1999, p. 15).


[12] Consideremos a forte relação entre Borges e o Ultraísmo. Segundo Bella Josef (1996, p. 35), “como versão espanhola do futurismo, mostrou o caminho inicial da poesia borgiana sem que ele obedecesse totalmente às fórmulas (...). O ultraísmo definiu-se por um culto de imagem como única força capaz de gerar poesia, o gosto pelo verbal e a intenção de chocar”. 
[13] O sujeito cartesiano é racional, pensante e consciente, situado no centro do conhecimento, Este sujeito também é conhecido como sujeito do iluminismo. Para Hall (2003, p. 10-11), “o sujeito do iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou ‘idêntico’ a ele – ao longo da existência do indivíduo”. 


[14] Na era moderna, além do sujeito cartesiano, ou iluminista, nasceram dois outros sujeitos, a saber: o sociológico e o pós-moderno. O primeiro tem sua “identidade (...) formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”. O segundo difere do primeiro, pois, o sujeito pós-moderno, “assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2003, p. 12-13). 


[15] Lendo outro conto de Borges As ruínas circulares, também de Ficções, encontramos certa relação paralelística. Um homem queria sonhar um homem, com minuciosa atenção às particularidades de uma criação e “impô-lo à realidade” (BORGES, 1975, p. 54), no entanto, tudo o que pode criar foi um fantasma que habitava unicamente em seus sonhos e tinha o cuidado de não revelar-lhe sua origem real. Roy não era um homem, mas “a projeção do sonho de outro homem” (BORGES, 1975, p. 59).


[16] Vejamos Emerson em Threnody: THE South-wind brings / Life, sunshine and desire, / And on every mount and meadow / Breathes aromatic fire; / But over the dead he has no power, / The lost, the lost, he cannot restore; / And, looking over the hills, I mourn / The darling who shall not return (Ênfase nossa).


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